domingo, 5 de setembro de 2010

Carta ao meu melhor amigo

Querido amigo, como vão as coisas? Ou será que, como aqui comigo, elas também não caminham para canto algum, mas perdem-se alheias como homens cegos no meio do bang-bang?

Começar esta nova frase com “pois é” seria um bom começo. Bem clichê, verdade, mas quem se importa? Então, pois é, meu amigo querido, após todas estas vírgulas, que expressam aquilo que não tenho podido dizer verbalmente, creio que posso contar-lhe as aflições as quais destinei a esta carta tola.

Acho que toda esta delonga me serve para evitar chegar ao foco desta conversa que, em verdade, é um monólogo calado, tipografado, emocionado apesar da aparência fria. Emocionado porque tais emoções não permanecem contidas em mim, como dantes deveriam, mas vazam pelas mãos encarregadas de escrever letra por letra.

Ocorre-me que talvez eu esteja dentro de um paradoxo. Uma trama enfadonha, emaranhada em minha cabeça de forma que unhas compridas como as minhas são mais do que necessárias ao tentar desfazer alguns nós. É cada homem de um lado e eu no meio, com o pensamento dividido. Não, dividido não é o melhor vocábulo. Compartilhado, seria? Sim seria.
Enfim, meu pensamento comporta ambos: aquele que me lembra amor, casa, família e conforto; faz-me pensar em piqueniques e caminhadas à beira mar. Longos passeios sob a noite paulistana e as tardes fumacentas de outono sob as cobertas. Beijos mais felizes, tudo cor-de-rosa!

E há também aquele que, bem, não sei dizer se posso chamá-lo de antagonista em minha história, mas sim, sua marca em mim é indelével. Na pele? Não, não, antes fosse! Muito menos no coração, não foi assim, tão romântico. Foi mesmo na cabeça quando quis sentir meus cabelos sendo puxados. Ah, foi na barriga quando se suprimiu um beliscão ou na panturrilha por causa das mãos que nunca me agarraram assim. Mas sei de cor a cena de um único beijo e recordo-me de braços nada sutis escorregando do meu tronco para minha coxa.

Cansei-me, bom amigo, de sonhar com a realização de tantas provocações, de tantos estímulos e palavras idiotas sopradas, que ao contrário do que poderiam fazer, instalaram-se em mim como parasitas ressonantes, em vez de simplesmente esvanecerem ou serem esquecidas no ar. Não, não. Aqueceram-me! Encheram-me de desejos infindáveis. E não pense que foi minha culpa: culpa deste verão fora de época, culpa do sangue italiano dele, culpa daquele perfume brotando da pele, cheirando a terra pura, madeira, quente e úmido. Vaporoso. Etéreo. Culpa da carne de seus lábios rijos e da minha carne fraca, odeio admitir.

Enfim, nada passou da linha da boa amizade. Ora, ninguém vê que isto é tão falso? A realidade muitas vezes é tão óbvia e fazemos questão de fingir. Somos tão complacentes com os fatos, mas não conosco. O que me toma por ele é desejo, possessão, agonia até. Coisas das quais mulheres não deveriam falar, e, contudo, eu preciso abrir o canal da voz e cantar em versos breves que não é amor: é sina.

Esta não é uma boa história para um filme romântico. Nem mesmo um enredo de novela, não, não. É apenas uma carta ao melhor amigo de alguém que, em sua desimportância, acha bonito escrever, assim, de forma tão antiquada; alguém como eu, tão hipócrita, a primeira a defender que a verdade seja dita. Mas como? Aliás, por quais motivos se eu não tenho nenhum?

É, meu amigo, um grande erro meu querer preservar um amor tão lindo em detrimento de uma obsessão sem futuro, sem causa? É pecado querer amar, ser fiel e, de quando em quando, se permitir pensar em poucos momentos, os que aconteceram e os que jamais acontecerão com outra pessoa? Rolar no chão, rolar na cama, rolar na areia da praia. Sem tapete macio, sem lençol de linho, sem estrelas nem luar marítimo. Sem brisa noturna que me refresque. Sem me importar com o trejeito e o palavreado bruscos, com as manchas roxas, possíveis cicatrizes, sem um beijo de amor que compense. Querer um beijo de fogo que em segundos consome o comburente no lugar de brasa lenta.

Uma única faísca em uma mancha de gasolina e fim, o estrago está feito. E meu corpo desfeito, inerte e gelado no chão. Sadismo, acho eu. Talvez ele goste de esfriar a cabeça com uma mulher já fria, branca. Sem reação, sem pedidos a fazer exceto um único: o de não parar.

Sei que lhe parece estranho caro amigo. Fique, pois, tranquilizado: não hei de trocar um grande amor, aquele que me fez sorrir depois de tanto tempo tendo os dentes cobertos com uma espécie de burca chamada boca. Lembra-se? A boca fechada e olhos lacrimosos. Vermelha como um pimentão no sol, mais triste do que a mulher que todos os dias na rua me oferece serviços dentários. Pobrezinha, mal tem os próprios dentes. Ficar sem um amor, seria, pois para mim, como perder os dentes todos e jamais poder sorrir outra vez. Nem mesmo morder maçãs.

Não troco o conforto dos braços que me acolhem por paixão sazonal. Paixão? Mera tolice, ciúme é uma boa palavra. Não chega nem a tentação. Embora eu saiba bem que ele não deixa de tentar. Oferecido demais, indelicado demais. Hora ou outra é bom sentir mãos firmes agarrando-me os seios, mas prefiro mãos macias e dóceis em meus quadris, mãos mais preocupadas, manipuladoras, ludibriadoras que tapam meus olhos e me fazem cair em sonhos. Lembram-me nuvens emplumadas. A brutalidade para mim fica a poucos metros do real e, no amor, eu prefiro voar mais alto. Quero as estrelas, não o asfalto.

Saiba ao menos que continuarei ocasionalmente imaginando coisas. Recaídas, você compreende, meu amigo. Deixe estar, logo passa. Em breve o desejo que me põe no chão cederá lugar a uma paixão que me arrebate para o alto, nos braços de um homem que me pinte de pétalas nacaradas. Já o que me borra de sangue vermelho, bom, este será esquecido. E, infelizmente, muitas vezes relembrado, cada vez que a terra sob meus pés tremer e agitar meu corpo num balé que se dança no chão, com braços e pernas abertas.

Com saudades do amigo.

*Carta enviada por Lizz

Um comentário:

Nath disse...

Sabe Lizz, os dois primeiros parágrafos me deram uma desanimada...
Eu fui lendo e lendo.. e vi que você escreve com muitos detalhes e retórica, coisa que não me agrada muito.
Mas existem pessoas que gostam tanto de ler quanto de escrever assim.
Bom, não larguei o texto e cheguei ao assunto. Sorte minha não ter desistido, porque eu passei a gostar da sua escrita. Dava até pra imaginar as cenas, o que deixa o texto muito bom! *opinião*

Brutal o sujeito do sangue :O
Mas o outro, tão romântico que me daria sono xD
se eu pudesse escolher, ficaria com o meio-termo, ahahah!

gostei das descrições :)
parabéns pela carta, Lizz!!