domingo, 1 de agosto de 2010

Carta de uma amiga cadeirante

Querida Patrícia,

Muitas coisas mudaram desde que sofri o acidente. E já começa pela maneira de me comunicar com você. Agora mesmo estou ditando as palavras a alguém que escreve para mim. No começo foi bem difícil. Você sabe como eu sou, as ideias afloram em minha mente e nem sempre as pessoas acompanham o meu raciocínio - às vezes nem eu mesma. Agora tenho que aprender a lidar com isso e acho que estou indo muito bem. A tetraplegia me trouxe mais paciência, concentração e habilidade para me expressar. Depois que perdi meus movimentos acabei achando atalhos em minha mente que me levam a um caminho mais rápido para me comunicar.

Resolvi te escrever porque queria reviver um pouco da velha amiga que eu era, da antiga Julia, sei lá. A última vez que nos encontramos você estava triste. Sei que preferiu não falar, mas eu a conheço. A nova e a antiga Julia sabem ver a alma de uma amiga verdadeira. E nenhuma deficiência subtrairia minha sensibilidade para desvendá-la. Que maluco isso, não? A amizade é um sentimento que acidente nenhum leva.

Esses dias me lembrei muito de você. A lembrança era muito forte. Eu estava passando naquele lugar que íamos quando adolescentes. Aquele bar mudou muito. Hoje, mesmo na cadeira de rodas, eu posso ir até lá. Depois de muitas reclamações, eles resolveram adaptar o local para pessoas com deficiência. Bacana, não acha? Sempre passo por lá de carro e lembro-me da época em que mentíamos para nossos pais só para irmos até lá. O local continua pitoresco. Agora, mais que nunca, eu consigo perceber as particularidades que cada lugar abriga. Fiquei mais sensível aos estilos diferentes de cada ambiente.

Não te contei ainda, preferi escrever. Você sabe o quanto as palavras me completam. Lembra-se do Marcos, que sempre foi um sonho para mim? Ele me encontrou há alguns meses no cinema. Ficou com uma cara de bobo quando me viu na cadeira de rodas. E para minha surpresa, aquele olhar de complacência, com o qual eu já me acostumei, foi substituído por um misterioso sorriso. Aquele rapaz lindo que nunca olhava para mim resolveu me dar a maior bola! Trocamos telefone e ele me convidou para sair. Fomos jantar e conversamos durante horas. Tudo aconteceu com uma certa urgência, uma necessidade irracional de amar que eu nunca havia sentido. Estamos namorando e nos descobrindo (eu me redescobrindo). Você sabe que ainda não havia tido um relacionamento. É tudo muito diferente para nós dois. O fato de não poder tocá-lo sozinha é um pouco estranho, mas ele não se importa. Diz que se interessa muito mais por mim hoje do que antes. Certo dia ele me contou que me tornei uma mulher muito mais cheia de vida depois da cadeira de rodas...Me surpreendo a cada dia que passamos juntos. Eu o toco por dentro e ele move tudo o que não posso mexer, girando meu mundo...

Acho que já falei demais sobre as minhas coisas. Mas isso não é novidade depois que sofri o acidente. Parece que tenho uma nova vida. Tudo o que sabia a respeito de mim mesma acabou perdendo espaço para a versão nova de uma mesma pessoa. Uma Julia de rodas. Mais viva que nunca, mais agitada que nunca. Renovada. A vida é definitivamente algo louco, beirando o surreal. Às vezes precisamos mudar tudo para se redescobrir. Eu mudei o corpo, os movimentos, a forma de comer, de sentir, de amar.. Enfim, de viver.

Mas, sabe de uma coisa? Mesmo depois de ter tido minha vida mudada de cabeça para baixo (quase literalmente se for pensar no acidente), sinto que nós continuamos as mesmas. Você discreta e às vezes calada. Eu imóvel nesta cadeira, mais inquieta como sempre. Mais falante como nunca.

Te tenho como um pouco do mesmo que restou de mim neste emaranhado de mudanças que minha vida passou. Um tanto que completa as lacunas deixadas pelos imprevistos do simples ato de vivermos. Esse pouco do que restou é o infinito que é a nossa amizade reprenta. E isso nada vai levar. Ficamos por aqui. A antiga e a nova Julia, aguardando ansiosas por sua resposta.

3 comentários:

Rid disse...

Não a conheço, mas fiquei contente de coração pela Júlia. Muitas felicidades no relacionamento e na vida =)

Jefferson Sato disse...

Essa carta é muito, muito bonita mesmo! Profunda e bela.

Nem tenho o que comentar. É só ler!

Nath disse...

Sato, eu ia escrever a mesma coisa! Não tem o que comentar... eu fiquei sem palavras com essa carta! Nossa, de verdade, eu fiquei feliz pela Julia com o Marcos e pelo jeito que ela leva a vida agora, se adaptando e feliz!

Parabéns, Julia! Às vezes o inesperado acontece e a gente muda pra melhor. Não posso confirmar, mas eu senti que você está mais confiante em si mesma, e mais sensível (pra mim isso é uma qualidade).

Só queria que uma coisa acontecesse agora: que a Patrícia respondesse a carta :)

beijo Julia, se cuida!